Publicado en AULA DE LÍNGUAS, POEMAS/CONTO/ LITERATURA AFINS

FLORIANO MARTINS | Dois encontros com Maria Lúcia Dal Farra

1 | O tempero da existência

Três expressivos livros de poemas – Alumbramos (2012), Livro de possuídos (2002) e Livro de auras (1994) – e o esplendor de uma poesia intrigante pela serenidade com que mergulha na reflexão do mundo que a habita, íntima e exteriormente. Maria Lúcia Dal Farra (1944) é uma sábia ausente da cena literária, sem que isto implique no desconhecimento de seus artifícios. Vivendo há anos em Sergipe, guiada por uma intensa sintonia com o cotidiano, seu espírito resplende aquele ensinamento alquímico evocado por Juan-Eduardo Cirlot, de que em todo labor, mesmo no mais humilde, as virtudes se exercitam, o ânimo se tempera, o ser evolui. Temperados justamente pela grandeza de sua humildade, nós nos sentamos para uma deliciosa conversa.

FM | Comecemos pelo alumbramento. Com quem dialoga a poesia de Maria Lúcia Dal Farra? Quais as fontes de teu alumbramento?

MLDF | Essa história das luzes é uma mania antiga da minha poesia (sou leitora de Bandeira desde os tenros anos) e ao mesmo tempo uma tortura. Pra começar pelos fundamentos, ou seja, pelo meu corpo, tenho uma cegueira periódica que ocorre a partir de um ponto luminoso que se instaura no meu campo de visão sem mais nem menos, como se uma auréola muito poderosa crescesse da cabeça de uma Madonna medieval que se manifestasse na minha frente e se expandisse por toda a minha órbita visual, preenchendo-a. Fico então sem enxergar nada, a não ser essa potente luz (por muitos e longos minutos) até que ela atravesse de lado a lado a abóbada e cumpra o seu percurso. Como vê, encegueiramentos e alumbramentos são coisas do arco-da-velha na minha vida primária.

Mas não foi por isso que o meu primeiro volume de poemas chamou-se Livro de auras – se bem que entre corpo e espírito o elo seja tão cerrado que tudo se passe sem o nosso entendimento. Leitora de Walter Benjamin há tempos, eu buscava deliberada e desesperadamente (na década de 1990) lutar contra a histórica perda da aura (das coisas e do poeta) para encetar uma comunicação com o leitor que nos fizesse, a mim e a ele, reaver (para comungar) uma unicidade impossível. Era um esforço louco, baldado e urgente, num tempo em que o mundo que conhecia desabava: de um lado porque eu sofrera o mais duro golpe da existência; de outro, porque todos entrávamos na tal da pós-modernidade líquida e vertiginosa onde tudo já é outra coisa.

É verdade que isso vinha acontecendo paulatinamente na minha história subterrânea, porque antes de publicar tão tarde esse livro inaugural (aos 50 anos, em 1994), eu escrevera (desde muito cedo e ao longo da minha vida) sete outros que restavam e restam mudos e surdos – visto que não tocados por ninguém. Na carência de leitor, a minha poesia solitária parecia prestes a desembocar num ilegível absoluto, e foi assim que resolvi tomar, contra toda a evidência, aquele caminho para tentar falar com alguém. Abandonei tudo o que havia escrito até então e me botei na empreitada de escrever um novo livro (publicável) e que, em princípio, me salvaria. (Quem, se eu gritar, me atenderia nesse turbilhão de vozes?) Não me salvei e nem a ninguém; minha aura espatifou-se quando tentei levitar como os anjos de Rilke. Mas o esforço valeu.

A experiência de estraçalhamento me mostrou que talvez fosse mais seguro (pelo menos para ter chão aonde pisar) conversar mais cerradamente com os meus pares: os poetas mortos. Eles sempre foram os meus interlocutores, as obras com quem falo. De resto, para além deles, dirijo-me desde então a um elenco de pessoas com quem suponho estar entrando em diálogo (repare como os meus poemas são repletos de dedicatórias); e, depois, a toda a gente que bote os olhos em cima da minha escrita. O fato é que não tenho ilusões: possuo pouquíssimos leitores vivos, e isso é bom porque escrevo mesmo para alguns, sobretudo hoje que a medida é a massa.

A fonte do meu alumbramento é, pois, o outro; aquilo que o outro me traz de luz para qualquer tipo de conhecimento que possa realizar na escrita de um poema, quando tento desvendá-lo ou trazê-lo para mim.

FM | Há uma distinção possível entre o poeta e o poema?

MLDF | Transforma-se o amador na coisa amada…

FM | Eu gostaria de me referir ao universo da crítica de poesia no Brasil, porém este universo é inexistente. Em seu lugar, o que temos, e muito ocasionalmente, são anotações dispersas, de cunho jornalístico, que tocam mais o pitoresco do que propriamente o essencial sempre que remetem a algum poeta. O ambiente de pesquisa acadêmica é igualmente desalentador. Evidente que não escrevemos para atender a essas vertentes. No entanto, cabe indagar: considerando os personagens envolvidos, quem não está desempenhando bem o seu papel?

MLDF | De verdade mesmo escrevemos para ninguém, pelo menos para ninguém que nos ouça ou que nos leia – escrevemos sempre para quem ali não está e que, se estivesse, não se encontraria onde supomos que pudesse estar. A poesia nasce desse desencontro jamais resolvido e essa é a maneira de ela se projetar para adiante – porque procura aquele que ainda não há. A rigor, portanto, era bom que o crítico ocupasse esse lugar des-sabido e errático (pelo menos por alguns instantes) nem que fosse dentro da máscara de um “hypocrite lecteur” baudelaireano (que, aliás, nesta versão da modernidade, data pelo menos de 1848 – donde se vê que o espaço vazio é antigo).

Mas não dá para falar, a não ser raramente, em existência de crítica de poesia no nosso país, e desde há largos anos. Para referir minha experiência própria, desde muito jovem eu lia aquilo que se produzia no Brasil (e também lá fora) através do Suplemento Literário de Minas e do Estadão – mas esse mundo já acabou. Será que em algum lugar da internet isso ainda se asila? De que maneira? Vejo (algumas vezes) que blogueiros se conectam (intuitivamente, suponho) em algum poema que lhes cai nas mãos, e passam a exibi-lo e a dividi-lo com quem os visita. Creio que não saibam bem do que se trata. São (digamos) tocados por seu súbito raio de inusitado e o divulgam porque aquilo se afina de alguma maneira com eles, graças a esse raspão hipnótico com que o poema os fende. Quero crer (que mesmo assim minimamente) o senso crítico desse leitor transparece esbatido aí, mercê desse insight ocasional que fica embutido na sua escolha (implicitado nela), o que já é, nestes tempos de calamidade, pra lá de bom. Talvez seja por aí que a poesia faça o seu passe e avance para outro e outro leitor até que encontre aquele que a invente. Aliás, a minha poesia tem tido a alegria de conhecer alguns desses passageiros de lumes, sobretudo no meio acadêmico e junto a meus pares.

Acho, por outro lado, que a gente poderia, se quisesse, escrever aquilo que o mercado pede (tratar a obra como mercadoria) e então faríamos o maior sucesso, teríamos “críticas” condizentes e ganharíamos dinheiro. Mas pra quê? Para que andar na mão se a gente pode obter um prazer desmesurado seguindo em contrapelo? Para que ler Elisa Lucinda se se pode ler Cecília Meireles? A poesia só existe quando se coloca contra a linguagem que vigora, cavando frestas por onde significar outra coisa que ela mesma ainda nem sabe o que é. E só há um jeito de viver isso: no impasse. Porque não é só uma questão de contenda sempre armada entre o poema e o seu leitor. Mas de uma luta engalfinhada entre o que a poesia busca produzir e aquilo que suas leis de produção lhe permitem ou não ultrapassar enquanto fatores constitutivos da comunidade da qual ela emerge e com quem dialoga. Muito embora em trânsito permanente, esse mecanismo de mercado só sossega se domá-la, ávido por abocanhá-la como sua presa, pasteurizando-a em definitivo. Fugir desse sequestro, enfrentá-lo no texto, situa a poesia nesse impasse de que falo, pois que o ato poético, na impossibilidade do heroísmo que redundaria inócuo, não pode ceder à contraparte cínica contida no desejo de se realizar.

O fato é que, assim, o ato poético parece fadado ao suicídio. Porque manter-se nesse limiar beligerante e perigoso, em estado de periclitância entre um e outro valor, em equilíbrio para a criação de uma linguagem que, obrigada a fazer concessões, não as autentica – é o que parece ser o impossível e legítimo ofício do poeta contemporâneo. E o que solicita dele uma ação contraditória, uma absurda práxis que só pode exercer-se em oximoro.

FM | O Brasil sempre foi muito acanhado ou mesmo ausente em relação a um tipo de evento literário que surge em nosso continente nos anos 1960, os encontros internacionais de poetas. A legitimidade desses eventos expressou sempre uma forma de resistência. Quando surgem no Brasil tratam de atrelar-se à outra margem da tradição, adotando as perspectivas de mercado. O que era para ser característica de uma reação, entre nossos escritores e intelectuais, se torna a adoção de um festejo de mercado. É outro evento, muito revelador de uma cultura, não resta dúvida. E o mecanismo adotado, muito feliz, pouco a pouco está banindo os poetas.

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